A Vida beijou a morte
- Há mortos e feridos em Bulbul. Há mortos e feridos em Khur el Bachar.
Quisera enganar-me, mas estas e outras passam a ser notícias de rotina no Darfur.
Os comentários na rua terminam com um encolher de ombros que diz muito:
- Que posso fazer? Os soldados da paz da União Africana andam por aí aos montes. Ainda agora aqui passaram duas furgonetas de caixa aberta cheias; armados até aos dentes. Em Bulbul e Khur el Bachar seria necessária a sua presença. Mas não. Andam por aqui a passear no mercado da cidade, a atrapalhar quem quer fazer vida...’
Levanto os olhos para a cruz. Vejo a morte que resiste e não quer morrer:
- Pai, porque me abandonaste?
Palavras ‘escandalosas’ na boca daquele que é o Filho de Deus?!
Tiveste mesmo que morrer desse jeito?! Tocaste o fundo do que é o mais baixo e vergonhoso do último dos seres humanos. Mas desse mesmo quiseste ser irmão. E o seu coração reviveu quando dos teus lábios moribundos ouviu o derradeiro testemunho:
-Tudo está consumado.
Sim, mesmo tudo. Em obediência ao plano de amor que te levou à morte de cruz. Essa cruz que vamos homenagear de aqui a uns momentos. Um beijo, um olhar a dizer shukran (obrigado), uma genuflexão. Aceita, Senhor, este gesto meu e destes irmãos e irmãs de Nyala. Não estamos aqui para fazer conspiração de vingança à maneira humana. Também não queremos anunciar ao mundo o luto pela tua morte. É o nosso agradecimento que te vimos trazer. Hoje, de maneira muito especial, com todos os redimidos do mundo inteiro. Hoje, dia da Grande Sexta-Feira, a tradução literal do árabe para a Sexta-Feira Santa.
Quando penso na sua morte Ele não está morto. Vive e eu vivo com Ele. Vive e vivem com Ele os 200 mil caídos na guerra do Darfur e os seus 2 milhões e meio de refugiados que tentam agarrar-se à vida.
O José de Arimateia não se enfadou comigo quando lhe pedi para entrar e ficar no sepulcro com Jesus. Oportunidade única para um velório muito particular. Por um amigo que deu a vida por mim. Estar ao pé dele. Isso é tudo.
As trevas não têm fim e a solidão aumenta. Penso que já é Sábado. O silêncio é sepulcral! Morte verdadeira e não fingida. Finalmente, a Luz e a Vida explodiram nas trevas da noite e da morte. Ah, sim, é o primeiro dia da semana. Tentei registar a hora exacta, mas o tempo não existe. Só há eternidade. Não ouso perguntar quem rolou a grande pedra que tapava o sepulcro. Que importa!? Sei que Ele ressuscitou e isto é tudo!
A vida beijou a morte e abriu-lhe as portas da eternidade feliz. Cruz, morte, sepulcro, ressurreição... pertencem ‘à mesma realidade. É Grande e é Santa aquela Sexta-Feira, pois é irmã do Domingo de Páscoa.
Cantemos Aleluias! As nossas vozes já não podem destoar. O Senhor Ressuscitado está presente e vai afinando, connosco, as cordas da eterna melodia.
Feliz Martins,
Missionário Comboniano em Nyala, Sul do Darfur (Sudão)
Missionário Comboniano em Nyala, Sul do Darfur (Sudão)
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