JOVENS & MISSÃO

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segunda-feira, 22 de janeiro de 2007

Darfur

© Foto Lusa


ANTES QUE SEJA TARDE

«Assalam aleikum».
Uma saudação apressada de duas palavras.
Um «bom-dia» de alguém com o coração apertado pela angústia. Por isso passou em branco a lengalenga de perguntas e respostas acumuladas e repetidas sobre a vida, a saúde, a família com se cumprimenta nesta terra.
Veio do frio da noite, das estradas improvisadas no deserto-savana do Darfur. Convido-o a sentar-se, mas não dá conta da cadeira. Fica de pé, o turbante a envolver-lhe a cabeça, permitindo apenas ver-lhe os olhos que me falam de aflição e de muita esperança de viver. Destapou o rosto e, da sua boca, brotaram palavras de amargura.
«Não podemos aguentar mais. Já há muito que a nossa gente quer fugir desta terra maldita. As razias tornaram-se normais e frequentes. Em cada hora que passa há vidas que já não são. Muitas aldeias já deixaram de existir. Muitas vezes somos obrigados a conviver com o cheiro fétido dos corpos que nem sempre podemos sepultar. Agora já não há longe nem perto: os “janjauid” moram ao nosso lado. Violam as nossas mulheres e filhas; roubam o nosso gado. A nossa vida ou a nossa morte depende somente do bel-prazer desses malditos sanguinários».
Que fazer? Pronunciar palavras de consolação? De pesar? Escolhi o silêncio.
Daí a instantes, concluiu: «O meu nome é Makur». Homem já bem entrado nos cinquenta. Sultão, com longa experiência de comando na tribo dinka. Pela posição que ocupa, sabe que não pode chorar nem deve mostrar medo. Seria a sua derrota.
MaKur está em apuros. Não quer manifestar os seus verdadeiros sentimentos. Respira fundo para tomar coragem. O catequista Isak que o acompanha apercebe-se e não o quer deixar ficar mal. Com delicadeza e respeito pelo sultão, pega na palavra e continua o trágico discurso que, infelizmente, não é novo nem desconhecido para mim.
Muitos dos cidadãos da zona de Greida, onde Isak é o catequista responsável, já foram levados para o enorme campo de refugiados da área.
«Se temos de fugir, que seja em direcção à nossa terra, porque nós não somos daqui e não temos nada a ver com os árabes» – diz Makur, agora mais calmo e sereno.
Makur e Isak representam uma lista sem fim de gente que vem de uma longa caminhada. A segunda guerra civil do Sudão matou dois milhões. E mudou a identidade aos sobrevivents. Passaram a chamar-se deslocados ou refugiados. Mais de cinco milhões. Errantes, sem eira nem beira.
Alguns deles encontram-se na vasta região do Darfur, numa vida que não é vida, vítimas da discriminação atroz por parte da população e das autoridades muçulmanas.
Finalmente, depois de 23 anos de guerra, chegou a tão suspirada paz. Voltar para o Sul é, pois, o anseio de quem de lá fugiu. Especialmente dos que se encontram no meio deste massacre infernal do Darfur. Chamar-lhe guerra é pouco. O que, desde há quatro anos, está a acontecer nesta zona do Oeste do Sudão é um verdadeiro genocídio.
Registo a expressão de Makur que me convida a olhá-lo de alto a baixo e diz, com tristeza: «Pensávamos poder regressar com calma e tão somente depois de ter enchido estes ossos, mas agora está difícil salvar mesmo os ossos!»
Os ossos ainda não se encheram, mas não há tempo a perder. Põem-se a caminho, antes que seja tarde demais. Não contam reconhecer a casa ou os haveres que deixaram no Sul. Porque já não existem. Tudo começará da estaca zero. Acreditam, porém, que é possível reconstruir a vida. Lá, onde há paz: em Juba, Wau, Bahr el Gazal, Rumbek, Torit... a querida «pátria» do Sul do Sudão.
Entretanto, o chão que piso, continua a ser o palco da morte e os campos de refugiados que se improvisaram passam bem da centena. Se Cartum quisesse… se o mundo quisesse… a palavra «genocídio» não existiria neste ponto do globo.
Todavia, há muita gente a rezar e a trabalhar para trazer de volta a felicidade que Deus sonhou para estes seus filhos e filhas. Não queremos o inferno no Darfur. A paz há-de vencer! «Inshá Allah!». Se Deus quiser!
Feliz da Costa Martins, missionário comboniano
Nyala (Darfur)